sábado, 23 de junho de 2012

BRAT PACK – FETICHISMO E HOMOEROTISMO EM QUADRINHOS.



Aviso: Este artigo é recomendado para maiores.
Contém Spoilers.

 
Viver rápido. Amar rígido. Morrer com a máscara.
Criada por Rick Veitch, a série originalmente continha 5 edições escritas e desenhadas por ele, toda em tons de cinza. Foi publicada pela editora Tundra. Quando essa fechou as portas, Rick fundou sua própria editora, King Hell Press, onde reuniu os cinco números de Brat Pack em um encadernado especial, revisou o texto, adicionou novas páginas e mudou o final, fortificando ainda mais a mensagem que ele queria passar desde o começo.  Foi indicado ao Eisner Award de melhor álbum em 1995.
Brat Pack foi publicado no Brasil pela HQM Editora. Esse edição contém um texto, onde  o desenhista Stephen Bissete (responsável pela arte espetacular do Monstro do Pântano na fase Alan Moore) nos explica, que “Brat Pack” foi um título emprestado por Rick Veitch, que era usado para definir uma geração de atores e atrizes de Hollywood, e o usou para dissecar as verdades não faladas que sempre rondaram os quadrinhos de super-heróis.
Neil Gaiman escreveu a introdução à história e também faz um importante esclarecimento; antes de ler Brat Pack é preciso ter três coisas em mente, a fim de desfrutar integralmente dela:
1 – Pouco antes da publicação de Brat Pack, a DC Comics promoveu uma votação telefônica entre seus leitores para decidirem se Robin deveria morrer ou não. Como resultado, Batman enterrou seu parceiro após ele ser esfolado vivo pelo Coringa com um pé de cabra e deixado para morrer numa terrível explosão. Essa edição imediatamente se tornou item de colecionador.
2 – O personagem Estrela Polar, membro da Tropa Alfa da Marvel Comics saiu do armário e assumiu sua homossexualidade, e embora não tenha sido o primeiro personagem gay dos quadrinhos, foi o que mais chamou atenção para o fato. Essa edição também se tornou item de colecionador.
3 – Rick Veitch assumiu a árdua tarefa de substituir Alan Moore no título do Monstro do Pântano após sua saída. Rick já havia trabalhado no título desenhando as histórias de Moore, mas agora teria que ficar encarregado também dos roteiros. Ele conseguiu segurar a revista com dignidade durante um período, mantendo o clima de horror sofisticado implementado por Moore. Mas a DC censurou de última hora a edição produzida por ele, onde o Monstro teria um lúdico encontro com Jesus Cristo. A editora considerou que tal abordagem poderia ser interpretada como “blasfêmia”. Não publicada, essa edição nunca se tornará item de colecionador. Rick Veitch demitiu-se após esse fato.
E então veio Brat Pack.
Durante anos, Trueman, o maior herói de todos os tempos protegeu a humanidade. Mas depois de seu desaparecimento, coube a seus ajudantes continuar com seu legado heroico. Apesar de não possuírem poderes, esse panteão de corajosos campeões se esforçam para manter as ruas seguras. Doninha Noturna e seu parceiro Chippy. Senhora da Lua e sua discípula, Princesa. Rei Rad e seu protegido Selvagem. Juiz Juri e seu  aprendiz, Kid Vício.
Mas as ruas estão mais perigosas do que costumavam ser. Após o confronto com o terrível “Doutor Blasfêmia” e os eventos que levaram a morte dos parceiros mirins dos maiores heróis da cidade de Slumburg, novos jovens são selecionados e começam a ser treinados para substituí-los. Mas com o tempo, os novos Chippy, Princesa, Selvagem e Kid Vício, descobrem que a grande honra a qual foram submetidos pode não ser exatamente o que imaginavam, e que seus pretensos heróis podem ser na verdade a porta de entrada deles para um novo mundo… repleto de drogas, prostituição, pedofilia, fetichismo e exploração sexual. O mundo de Brat Pack.
O Doninha Noturna divide a cama com seu novo parceiro mirim, Chippy,e não tem o menor pudor de deixar claro que tem pleno controle sobre ele, fazendo do garoto seu brinquedo sexual. Seus métodos são violentos ao extremo… ele pode matar seus inimigos ou estupra-los em público… apenas para dar o exemplo.
A Senhora da Lua ensina sua pupila a arte de seduzir e dominar os homens e como utilizar toda a sua feminilidade e tirar proveito disso. A exploração da beleza da mulher deve, segundo ela, ser utilizada ao máximo, e para isso qualquer intervenção cirúrgica é um pequeno preço a se pagar. Seu método preferido de castigo é a castração de seus inimigos, cujos “troféus” ela exibe com orgulho em seu cinto.
Rei Rad é um canalha inescrupuloso, misógino e mimado. Tem muito dinheiro e pouca consciência. É um dos maiores fabricantes de armas do planeta. Alcoólatra, ele não vê problema algum em treinar um adolescente como seu novo parceiro, o Selvagem, e ensiná-lo a lidar com armas de grande calibre e bombas… entre uma e outra dose de whisky.
Juiz Juri é um nazista fanático, elitista e pregador do ódio entre as diferenças.  Seu sonho é eliminar todas as raças “não puras”, o que inclui os outros heróis da cidade, os quais ele apenas tolera por uma questão de necessidade. Seu aprendiz, Kid Vício é submetido a todo tipo de humilhação imaginada, ensinado a odiar todas as etnias “impuras”. Diariamente recebe uma dose de esteroides, segundo Juiz Juri, o “café da manhã dos campeões”. Sente dores lancinantes devido ao tratamento de choque diário de seu mestre, e usa drogas pesadas para suportar o fardo.
Assim é o universo criado pela mente de Rick Veitch para Brat Pack.
Nos anos 50, o Doutor Frederick Wertham, popular psiquiatra e autor do livro “Sedução do Inocente”, atacou ferozmente os gibis, acusando-os de ser nocivos aos jovens, apontando vários exemplos de violência e apologia ao consumo de drogas, assim como o conteúdo homoerótico implícito nas histórias de Batman e Robin. Houve uma verdadeira caça as bruxas contra os gibis nessa época, e por causa disso, foi criado nos EUA, o Comics Code Authority, que regulava o conteúdo e até mesmo censurava algumas edições. Recentemente o selo foi abolido pelas grandes editoras. Mas uma pergunta fica: e se o doutor estivesse certo? Ou melhor ainda, e se alguém escrevesse uma história em quadrinhos onde, com certeza ele estivesse certo?
Já deu pra começar a pegar o espírito de Brat Pack?
A maioria das imagens deste artigo foram retiradas do site oficial de Rick Veitch  , onde é possível baixar gratuitamente a primeira edição de Brat Pack (em inglês).
Por Rodrigo Garrit
Originalmente publicado no Santuário.
 

RANXEROX – THE SEX MACHINE



Ou: “Nada é sagrado, tudo deve ser dito”.
ATENÇÃOEste artigo é recomendado para maiores.

Os quadrinhos, sendo a linguagem artística mais desprezada pela Alta Cultura, é objeto de carinho e interesse especial por parte dos baderneiros. Em um mundo virado de cabeça para baixo, a forma mais desvalorizada de arte adquire uma súbita importância”.
Rogério de Campos
Na turbulência de uma revolução, surgiu o reflexo de uma atitude na cultura pop. Contestador, transgressor e amoral. Um robô feito a partir de uma máquina de Xerox (exatamente isso, a copiadora) e programado para ser um ícone dos quadrinhos italianos dos anos 80, destinado a ser eternamente lembrado como o pioneiro de um movimento que antecedeu muito do que vimos e lemos nos anos seguintes.
A ideia do Ranxerox nasceu em um ônibus, quando eu voltava para a universidade depois de uma série de batalhas contra a policia, em 1977. Havia uma fotocopiadora usada sendo chutada por vários estudantes e me veio à mente que ela poderia ser transformada, de uma simples fotocopiadora da realidade, em uma coisa mais ativa, mais bélica… poderia ser transformada em um robô por um estudante de bioeletrônica. Que foi exatamente o que desenhei para a Cannibale”.
Stefano Tamburini – citação publicada na edição especial de Ranxerox da Conrad.
Ranxerox foi criado por Stefano Tamburini em 1977 na Itália, durante o movimentoestudantil em reação ao anúncio do ministério da educação de diretrizes mais rígidas para os exames, o que ganhou proporções muito maiores, mesmo quando o então ministro Franco Maria Malfatti voltou atrás em sua decisão, o estopim da revolução já havia sido iniciado, e os jovens foram as ruas protestar por melhores perspectivas de vida para os formandos, contra o autoritarismo e claro, o próprio capitalismo.
Em meio a esse caldeirão ideológico, “Rank Xerox” começou a ser publicado nas edições undergroundsCannibale e depois na Frigidaire. Então esqueça todo aquele esquema dos quadrinhos americanos moralistas e cheios de pudores. Ranxerox é um escarro na nossa cara, a grande metáfora da vida real elevada a sua décima potência. Um androide feito a partir de uma máquina de Xerox que pode copiar as emoções humanas, entre outras funções surpreendentes. Ele é um típico sobrevivente da repressão social, morador de periferia, usuário de drogas e amante de uma nada inocente garota de 13 anos, Lubna. O que não faz dele um pedófilo… ou faz? Talvez… se fosse humano. Tecnicamente ele é um robô mais jovem do que Lubna. Mas isso envolve outras questões éticas que não cabem aqui.
A liberdade criativa dos autores de Ranxerox não conhece limites, e eles fazem uso total dela, transitando pelo mais profundo escárnio e recorrendo a todos os recursos disponíveis, desde cenas de nudez e sexo explícito, até o consumo indiscriminado de drogas e a violência gratuita que choca exatamente pelo fato de partir desse gigante cibernético descontrolado e multifuncional. Todas essas cenas são apresentadas de forma despudorada, elas existem no cotidiano dos personagens e definem aquilo que eles são; não são recursos eventuais criados com a finalidade de gerar polêmica e aumento de vendas. Ranxerox é uma das melhores coisas que já foram feitas na nona arte, algo que todo fã precisa ler para se considerar um verdadeiro nerd amante de quadrinhos.
Não estou defendendo aqui as atitudes questionáveis dos personagens, mas é preciso lembrar que elas foram criadas dentro do contexto de uma revolução, e precisava ser um grito de liberdade que expressasse de alguma forma os ideais de uma comunidade jovem, punk rock, e constantemente silenciada pelo sistema.
Houve problemas, é claro, com a marca Xerox, que não gostou de ver seu nome associado a essa HQ pouco convencional sem autorização. Eles entraram em contato pedindo que o nome fosse mudado, e tiveram a seguinte resposta, dita pelo próprio Ranx, desenhado por Tamburini: “E eu me verei obrigado a rasgar o cu de vocês”.
De qualquer forma, o nome foi alterado de “Rank Xerox” para “Ranxerox” e tudo ficou por isso mesmo.
Nosso protagonista é um robô, mas muito humano em vários sentidos. Ele tem vários comportamentos que em nada lembram a frieza robótica de algumas máquinas ( e alguns humanos). Por exemplo, ele transa. E muito.
Conforme Tamburini nos explica na história “Ranx em Nova York”, o cérebro eletrônico de Ranxerox é estruturado de maneira a produzir emoções sintéticas, induzidas por três estímulos primários: cor, timbre vocal e odor. Tais estímulos acionam relês que, por sua vez, determinam uma fotocópia de emoções (ódio, amor e indiferença). Esses sentimentos mecânicos são muito rudimentares e instáveis. Podem mudar repentinamente a respeito de uma mesma pessoa, caso ela mude de roupa ou de comportamento. Afora isso, Ranx é dotado de um violento instinto animal de sobrevivência. O único mistério é o incrível arrebatamento amoroso que ele nutre por Lubna, devido talvez a um choque na cabeça que causou a estabilização em ciclo contínuo (loop) de um programa que faz com que ele seja apaixonado por ela, e por isso não é capaz de lhe fazer nenhum mal. O mesmo não se pode dizer dos outros: Ranx é extremamente violento, dependendo do seu estado de espírito (ou programação), não olhe torto, não seja mau educado e não tente vender uma rosa. Mesmo que você seja uma garotinha singela. Seus dedos podem acabar quebrados do mesmo jeito.













Apesar da “paixão” por Lubna (que faz dele o que bem entende e deixa claro que tem por ele o mesmo sentimento de amor que a mãe dela teve por sua primeira lava-louças), Ranx é muito chegado num rabo de saia, e vez por outra apronta das suas, enchendo a cara com amigos, se drogando e transando adoidado.
Mesmo sendo um robô, Ranxerox tem um sistema nervoso artificial tão apurado que permite que ele tenha um “barato” ao usar drogas e fique excitado e tenha ereções como qualquer outro homem. Ranx é um adorável devasso, uma criatura livre, um “anti-frankenstein”… porque ao contrário do monstro criado por Mary Shelley, ele não é atormentado, não se esconde de ninguém e tem todas as noivas que desejar, embora ame apenas Lubna.
As histórias do personagem são surreais e deliciosas… cativantes do começo ao fim. É o puro suco do que de melhor se ouviu falar em cultura pop progressista nos 80 e 90, tanto em quadrinhos, quanto em cinema, literatura e teatro. Ele foi ilustrado por Tanino Liberatore e seus desenhos são belíssimos, como não poderia deixar de ser dentro dessa tradição europeia. Em alguns momentos, a arte de Liberatore me pareceu um pouco com o trabalho de Frank Quitely, mas muitíssimo superior ao traço do desenhista de “All Star Superman” (que considero um dos melhores do ramo). Fico pensando se não foi dessa escola europeia que ele encontrou inspiração para o seu trabalho. (Lembrando que Quitely é escocês).






















Stefano Tamburini, o “pai” do personagem, faleceu em 1986, vítima de uma overdose de heroína. Sua última história, intitulada “Amém”, ficou incompleta e só veio a ser finalizada em 1997 por Liberatore com ajuda do roteirista francês Alain Chabat.
Ranxerox foi publicado na íntegra no Brasil pela Conrad Editora, numa caprichada edição de capa dura contendo todas as suas histórias em ordem cronológica e excelente matéria de Rogério de Campos, situando o leitor a todos os fatos pertinentes ao contexto na qual o personagem foi criado, além de várias informações adicionais sobre os autores e os bastidores de sua trajetória.
Uma obra imperdível.
ZNORT!
Originalmente publicado no Santuário. 
Por Rodrigo Garrit