Ou: “Nada é sagrado, tudo deve ser dito”.
ATENÇÃO: Este artigo é recomendado para maiores.
“Os
quadrinhos, sendo a linguagem artística mais desprezada pela Alta
Cultura, é objeto de carinho e interesse especial por parte dos
baderneiros. Em um mundo virado de cabeça para baixo, a forma mais
desvalorizada de arte adquire uma súbita importância”.
Rogério de Campos
Na
turbulência de uma revolução, surgiu o reflexo de uma atitude na
cultura pop. Contestador, transgressor e amoral. Um robô feito a partir
de uma máquina de Xerox (exatamente isso, a copiadora) e programado para
ser um ícone dos quadrinhos italianos dos anos 80, destinado a ser
eternamente lembrado como o pioneiro de um movimento que antecedeu muito
do que vimos e lemos nos anos seguintes.
“A
ideia do Ranxerox nasceu em um ônibus, quando eu voltava para a
universidade depois de uma série de batalhas contra a policia, em 1977.
Havia uma fotocopiadora usada sendo chutada por vários estudantes e me
veio à mente que ela poderia ser transformada, de uma simples
fotocopiadora da realidade, em uma coisa mais ativa, mais bélica…
poderia ser transformada em um robô por um estudante de bioeletrônica.
Que foi exatamente o que desenhei para a Cannibale”.
Stefano Tamburini – citação publicada na edição especial de Ranxerox da Conrad.
Ranxerox foi criado por Stefano Tamburini em 1977 na Itália, durante o movimentoestudantil
em reação ao anúncio do ministério da educação de diretrizes mais
rígidas para os exames, o que ganhou proporções muito maiores, mesmo
quando o então ministro Franco Maria Malfatti voltou atrás em sua
decisão, o estopim da revolução já havia sido iniciado, e os jovens
foram as ruas protestar por melhores perspectivas de vida para os
formandos, contra o autoritarismo e claro, o próprio capitalismo.
Em meio a esse caldeirão ideológico, “Rank Xerox” começou a ser publicado nas edições undergroundsCannibale e depois na Frigidaire.
Então esqueça todo aquele esquema dos quadrinhos americanos moralistas e
cheios de pudores. Ranxerox é um escarro na nossa cara, a grande
metáfora da vida real elevada a sua décima potência. Um androide feito a
partir de uma máquina de Xerox que pode copiar as emoções humanas,
entre outras funções surpreendentes. Ele é um típico sobrevivente da
repressão social, morador de periferia, usuário de drogas e amante de
uma nada inocente garota de 13 anos, Lubna. O que não faz dele um
pedófilo… ou faz? Talvez… se fosse humano. Tecnicamente ele é um robô
mais jovem do que Lubna. Mas isso envolve outras questões éticas que não
cabem aqui.
A liberdade criativa dos autores de Ranxerox não conhece limites, e eles
fazem uso total dela, transitando pelo mais profundo escárnio e
recorrendo a todos os recursos disponíveis, desde cenas de nudez e sexo
explícito, até o consumo indiscriminado de drogas e a violência gratuita
que choca exatamente pelo fato de partir desse gigante cibernético
descontrolado e multifuncional. Todas essas cenas são apresentadas de
forma despudorada, elas existem no cotidiano dos personagens e definem
aquilo que eles são; não são recursos eventuais criados com a finalidade
de gerar polêmica e aumento de vendas. Ranxerox é uma das melhores
coisas que já foram feitas na nona arte, algo que todo fã precisa ler
para se considerar um verdadeiro nerd amante de quadrinhos.
Não estou defendendo aqui as atitudes questionáveis dos personagens, mas
é preciso lembrar que elas foram criadas dentro do contexto de uma
revolução, e precisava ser um grito de liberdade que expressasse de
alguma forma os ideais de uma comunidade jovem, punk rock, e
constantemente silenciada pelo sistema.
Houve problemas, é claro, com a marca Xerox, que não gostou de ver seu
nome associado a essa HQ pouco convencional sem autorização. Eles
entraram em contato pedindo que o nome fosse mudado, e tiveram a
seguinte resposta, dita pelo próprio Ranx, desenhado por Tamburini: “E
eu me verei obrigado a rasgar o cu de vocês”.
De qualquer forma, o nome foi alterado de “Rank Xerox” para “Ranxerox” e tudo ficou por isso mesmo.
Nosso protagonista é um robô, mas muito humano em vários sentidos. Ele
tem vários comportamentos que em nada lembram a frieza robótica de
algumas máquinas ( e alguns humanos). Por exemplo, ele transa. E muito.
Conforme Tamburini nos explica na história “Ranx em Nova York”,
o cérebro eletrônico de Ranxerox é estruturado de maneira a produzir
emoções sintéticas, induzidas por três estímulos primários: cor, timbre
vocal e odor. Tais estímulos acionam relês que, por sua vez, determinam
uma fotocópia de emoções (ódio, amor e indiferença). Esses sentimentos
mecânicos são muito rudimentares e instáveis. Podem mudar repentinamente
a respeito de uma mesma pessoa, caso ela mude de roupa ou de
comportamento. Afora isso, Ranx é dotado de um violento instinto animal
de sobrevivência. O único mistério é o incrível arrebatamento amoroso
que ele nutre por Lubna, devido talvez a um choque na cabeça que causou a
estabilização em ciclo contínuo (loop) de um programa que faz com que
ele seja apaixonado por ela, e por isso não é capaz de lhe fazer nenhum
mal. O mesmo não se pode dizer dos outros: Ranx é extremamente violento,
dependendo do seu estado de espírito (ou programação), não olhe torto,
não seja mau educado e não tente vender uma rosa. Mesmo que você seja
uma garotinha singela. Seus dedos podem acabar quebrados do mesmo jeito.
Apesar da “paixão” por Lubna (que faz dele o que bem entende e deixa claro que tem por ele o mesmo sentimento de amor que a mãe dela teve por sua primeira lava-louças), Ranx é muito chegado num rabo de saia, e vez por outra apronta das suas, enchendo a cara com amigos, se drogando e transando adoidado.
Mesmo sendo um robô, Ranxerox tem um sistema nervoso artificial tão
apurado que permite que ele tenha um “barato” ao usar drogas e fique
excitado e tenha ereções como qualquer outro homem. Ranx é um adorável
devasso, uma criatura livre, um “anti-frankenstein”… porque ao contrário
do monstro criado por Mary Shelley, ele não é atormentado, não se
esconde de ninguém e tem todas as noivas que desejar, embora ame apenas
Lubna.
As histórias do personagem são surreais e deliciosas… cativantes do
começo ao fim. É o puro suco do que de melhor se ouviu falar em cultura
pop progressista nos 80 e 90, tanto em quadrinhos, quanto em cinema,
literatura e teatro. Ele foi ilustrado por Tanino Liberatore e seus
desenhos são belíssimos, como não poderia deixar de ser dentro dessa
tradição europeia. Em alguns momentos, a arte de Liberatore me pareceu
um pouco com o trabalho de Frank Quitely, mas muitíssimo superior ao
traço do desenhista de “All Star Superman” (que considero um dos
melhores do ramo). Fico pensando se não foi dessa escola europeia que
ele encontrou inspiração para o seu trabalho. (Lembrando que Quitely é
escocês).
Stefano Tamburini, o “pai” do personagem, faleceu em 1986, vítima de uma overdose de heroína. Sua última história, intitulada “Amém”, ficou incompleta e só veio a ser finalizada em 1997 por Liberatore com ajuda do roteirista francês Alain Chabat.
Ranxerox foi publicado na íntegra no Brasil pela Conrad Editora, numa
caprichada edição de capa dura contendo todas as suas histórias em ordem
cronológica e excelente matéria de Rogério de Campos, situando o leitor
a todos os fatos pertinentes ao contexto na qual o personagem foi
criado, além de várias informações adicionais sobre os autores e os
bastidores de sua trajetória.
Uma obra imperdível.
ZNORT!
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